24.7.09

Das narrativas












3.3.1 Das narrativas
Segundo Franz Stanzel, em Narrative situations in the novel , a narrativa está relacionada com a mediação que se coloca entre o leitor e a obra no ato da representação do mundo da ficção.
Para Stanzel há sempre uma força mediadora em qualquer situação narrativa, seja ela “autoral”, isto é, uma narrativa cujo mundo se realiza através dos olhos de um narrador (authorial médium), ou “personativa” filtrada pela consciência de uma ou mais personagens “refletoras” (figural médium).
Na série “Como Me Tornei Bípede ou Os Problemas Políticos de Ser Bípede” a forma narrativa predominante é a personativa, onde busco levar o leitor a desligar-se da perspectiva de um narrador que habita um tempo futuro e o convida a aventurar-se no presente.
Busco então que o leitor passe a compreender o mundo narrado como experiência, diário, como evento incorporado ao tempo existencial do personagem. Diferentemente da frieza de uma descrição analítica, o mundo narrado transforma-se em um conjunto ritmado de objetos cujas superfícies refletem a atmosfera da consciência da personagem.
Os objetos narrados se transformam em imagens vivas a partir de uma refletorização da palavra poética que se faz ouvir pelos cinco sentidos do leitor. A palavra, então, representa o objeto pelo efeito que este produz no personagem. A palavra transforma o objeto em impressão do objeto e posiciona o leitor frente a um mundo “impressionista” sem linhas definidas, um mundo em constante mutação, motivada pela consciência com a qual ele interage. Busco trazer ao leitor a experiência do outro e fazer desta vivência insólita a confirmação de que seu mundo não deve ser aceito como real e absoluto.
Com o Bípede a ação passa a ser assistida, não apenas executada; o espaço passa a ser percebido nos seus detalhes táteis, olfativos, visuais e não automatizado por quem se ilude em considerá-lo território familiar. O romance como representação da consciência dos sentidos (sensorial) é identificado no seguinte depoimento do escritor Joseph Conrad: “A tarefa que tento realizar é, pelo poder da palavra escrita, fazer você ouvir, fazer você sentir, e, antes de tudo, fazer você ver” .A utilização da narrativa refletorizada se deve justamente a isso, a possibilidade de tirar o narrador do afastamento do leitor e de tornar presente a realidade sensorial do objeto.
O interesse das narrativas personativas cai sobre o próprio ato de ver instantâneo que transforma a consciência em refletor móvel e o objeto em reflexos instáveis, estimulando que o leitor não só refletorize os Livros, mas também o mundo a sua volta, observando que nada é normal, nada é habitual.
As técnicas de representação, utilizadas com maior freqüência (pelo bípede), carcterizam-se pelo domínio da voz do narrador sobre a voz interior do personagem, “o relato do pensamento” , ou pelo afastamento da mediação do narrador e consequentemente a apreensão direta da voz da consciência, o “monólogo citado” .
No intuito de eliminar da imaginação do leitor o aqui-e-agora do narrador, a narrativa personativa evitou o uso exclusivo do relato de pensamento, pela óbvia predominância da voz de um narrador que, mesmo de acordo com o pensamento e reflexões da personagem, relata a consciência desta com uma organização imprópria ao “caos” inerente às trajetórias da mente.
A recorrência ao monólogo citado, registro da linguagem interior da personagem, caracterizada pelas referências na primeira pessoa e verbo no presente, ainda assim permitiria que a voz do narrador tornasse a ser ouvida logo que a narrativa deixasse o mundo interior do personagem.
A técnica do relato do pensamento, como é utilizada nas narrativas de situação autoral, jamais perseguiu as formas multidirecionais do pensamento humano, jamais flagrou a mente em pleno debate interior, com toda a sua força de presença.
A existência do Bípede se concretiza no caminho livre da lógica de causa e efeito, de onde vem a ação narrada por quem detém todo o conhecimento da história, ou seja, o narrador.
O monólogo citado tenta trazer o máximo de intimidade com a consciência que, do objeto narrado, transforma-se em sujeito condutor da narração.
Uma terceira técnica de representação da consciência é utilizada nos livros de forma sistemática. Suspenso entre a mediação ou objetividade do relato do pensamento e a subjetividade do monólogo citado, o monólogo narrado , como denomina Dorrit Cohn, conserva, na sua linguagem, um máximo de intimidade com a consciência.
Inserido num contexto estilístico que rompe com a maneira tradicional, o monólogo narrado, ao contrário do relato de pensamento, mantém o leitor próximo da interioridade da personagem. Através de uma “estilística das sensações”, como o emprego de reticências, travessões, exclamações, perguntas não respondidas, intercaladas por breves momentos de monólogo citado, o monólogo narrado delega ao seu leitor o papel de uma consciência que lhe escapa às mãos mesmo com o fantástico polegar opositor. A narrativa conduzida pela técnica do monólogo narrado expressa a tensão entre as vozes do narrador e do personagem-narrativa de onde ecoa uma ambigüidade de vozes, impossibilitando ao leitor precisar a origem de cada uma. “Se eu fosse músico”, confessa Herman Hesse, “poderia ler as notas, poderia facilmente escrever uma melodia a duas vozes (...). e quem soubesse ler notas poderia ler minha dupla melodia, ver e ouvir em cada som o contra-som, irmão, o inimigo, o antípoda. Pois bem, esta voz dupla, este eterno movimento de antítese, é o que eu gostaria de exprimir com as palavras” (Blanchot, 1959, p253).
As imagens que ocupam a consciência do Bípede nos transportam para o mundo das suas sensações e impressões para o mundo das emoções narradas no tempo do personagem. A técnica do monólogo narrado, responsável por este efeito, imprimi na fala aparente do narrador imagens da consciência da personagem e atribui novas funções à palavra narrativa. Tal palavra é impregnada de silêncio, com alto poder sugestivo, sem que emoções vividas sejam ditas e analisadas, mas suscitadas, porque sentidas, nas associações de imagens/texto, nas frases ou imagens fragmentadas ou numa alteração rítmica:
“Se eu escrevesse: “ele selou a carta”, isso seria abstrato. Se, ao contrário, eu falar de um selo verde ou da língua que o lambe, o texto imediatamente torna-se sensorial e, por assim dizer, concreto (...). Uma estória contínua, do modo como é descrita no romance tradicional, é artificialmente reconstruída, não é nem percebida, nem sentida. (kronegger, 1968, p.134).”
O poder sugestivo de cada imagem apaga as fronteiras entre o espaço interior e exterior da narrativa. O mundo narrado torna-se o espaço poético da consciência.
No romance bípede, a cada vez que um ponto é iluminado, uma zona escura surge: tudo o que a consciência afirma, o outro da consciência, ou sua sombra, nega veementemente.

“A razão por que tantas vezes interrompo um pensamento com um trecho de paisagem, que de algum modo se integra no esquema, real ou suposto, das minhas impressões, é que essa paisagem é uma porta por onde fujo ao conhecimento da minha impotência criadora. Tenho a necessidade, em meio das conversas comigo que formam as palavras deste livro, de falar de repente com outra pessoa, e dirijo-me à luz que paira, como agora, sobre os telhados das casas, que parecem molhados de tê-la de lado.”

Assim como Bernardo Soares, interrompo constantemente todas as narrativas, com outras narrativas, com outros personagens, narradores, múltiplas vozes, com outras paisagens e outras rasuras. Não posso dizer que me utilizo, ou me prendo somente a um destes tipos específicos de narrativa, até porque essa seria uma tarefa para escritores e estudiosos de literatura. Das três formas de narrativa abordadas aqui, existe uma predominância do monólogo-narrado – que deixa o leitor mais próximo do personagem utilizando a linguagem cotidiana, gírias, piadas, palavrões, fazendo com que o Bípede seja absurdamente humano. Porém, em um mesmo livro o tipo de narrativa altera-se chegando até mesmo a uma narrativa completamente impessoal e descritiva. É no “passeio caótico” de diversas narrativas que o bípede encontra sua comunicabilidade autóctone.