25.7.09

A carta


prezado Artista
li, em duas fases, seus escritos. Eis minhas impressões:
há alguns bons momentos nesse texto, algumas passagens de interesse, porque são curiosos, despertam curiosidade. Você vai gostar de ler Lautreamont, Raymond Roussel, Calvino... Eu, como leitor destes, mas também leitor compulsório de artes visuais, linguagens visuais etc., segui a leitura curioso para saber em que momento esse “tema” – ou esse nosso universo, contexto, campo comum – se faria presente. Isso não acontece. Você se recusa terminantemente a falar de arte, e declara isso logo no início. Trata-se de um texto que pretende auto-suficiência, que seja classificado, seja como isso ou aquilo, apenas a posteriori de qualquer leitura. Em outras palavras, um texto livre, pretendendo, por conta de sua atração como curiosidade, de sua incompletude e fissura, fundar um momento poético. Uma aventura narrativa. Nenhum problema em tentarmos tais aventuras, sem as quais nossa história e nossas estórias seriam de um tédio mortal; pior, imortal, perene. Mas precisamos levar uma vida tranquila. O que me preocupa – bem, muitas são minhas preocupações com os artistas, tão desorientados, e não é só você – é que um conselho supremo de artistas mestres do belo e rigorosos possam considerar essa insuficiência, essa falta de um caráter – digamos, “acadêmico”, na falta de definição melhor – leve a uma condenação, a uma recusa, a uma desaprovação, sei lá o quê. Devo confessar que, se eu fosse juiz supremo de arte, recusaria o texto como uma dissertação. Simplesmente porque o texto não é uma dissertação. Menos ainda, de linguagens visuais. Afinal, em que momento vc trata desse “tema, contexto, universo, objeto...”? O que justifica a existência e a inserção deste texto livre num contexto de mestrado? Que artistas e trabalhos e reflexões estão presentes, ao redor, por detrás, à espreita, como leitores/co-autores/cúmplices etc? Que trabalhos (de arte) justificam essa aventura pelo interior de diversas ciências, descomprometida com o rigor que aventuras do tipo deveriam demandar? Tipo levar um cantil com água fresca para o caso de sede, algumas barras de chocolate para matar a fome, uma ventarola de abanar, um repelente de insetos, o retrato de uma namorada para uma boa punheta, a passagem de volta para a volta. Artistas costumam portar esses itens em suas mochilas, mesmo quando não sabem por que portaram a mochila.

Com isso, caro artista, quero dizer que não sei bem o que quero dizer. Estamos a praticamente 2 meses das defesas de arte , os materiais que me foram enviados são, em geral, insuficientes, e estou numa situação de saia justa. Fazer o quê? Dar meu aval a n’importe quoi? Isso não dá para fazer. Não sei o que vc andou escrevendo como seqüência a este material, mas tendo a pensar que o problema fundamental não estará sendo contemplado: o de constituir uma reflexão DE arte (podemos ler esse de de diversas maneiras diferentes, mas o contexto em questão confere certas especificidades a esse de).
Penso que seu trabalho de ateliê poderá dar uma solidez ao corpo da dissertação, por conter, como produção visual, muitas de suas divagações no texto. Isso é uma compensação, mas não é uma solução. Isso se considerarmos que estamos, de fato, com um problema. Para mim, trata-se de um problema de descontextualização, de insuficiente reconhecimento e identificação de um site específico, que afinal constitui uma pré-condição para a produção de um bom trabalho de arte por um artista. Um pouco como falar a língua local do site em questão, de modo a obter alguma comunicação com o local e daí para o universal. Caso contrário, a produção é ensimesmada, voltada para si mesma, fechada, entrópica. E que ainda pode deixar o criador reclamando da falta de comunicação – no caso dos artistas incompreendidos.



A Academia Imperial

A vida é bela

24.7.09

Primeira Introdução
















Como Me Tornei Bípede ou Os Problemas Políticos de Ser Bípede



ou

Last Mass Of The Caballeros






por

GUSTAVO MOREIRA SPERIDIÃO

Programa de Pós Graduação em Linguagens Visuais











Dissertação de Mestrado em Linguagens Visuais apresentada à Coordenação do Programa de Pós Graduação em Artes Visuais, sob orientação do Professor Doutor Milton Machado.












Rio de Janeiro, 1º semestre de 2007

Defesa de Dissertação

SPERIDIÃO, Gustavo Moreira. Como Me Tornei Bípede ou Os Problemas Políticos de Ser Bípede. Dissertação de Mestrado em Linguagens Visuais do Programa de Pós Graduação em Artes Visuais. Rio de Janeiro, UFRJ, Escola de Belas Artes, 2007, 146 folhas.




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Prof. Dr. Milton Machado
(orientador)



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Profª. Drª. Marisa Florido




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Prof. Dr. Carlos Zílio




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Prof. Dr. Guilherme Bueno




_________________________
Profª. Drª. Sheila Cabo







Dissertação defendida em / /











Dedico este trabalho às minhas pernas que primeiro me apoiaram.


Resumo

A série Como Me Tornei Bípede ou Os Problemas Políticos de Ser Bípede. Quatorze livros-cadernos de diversos formas e conteúdos.



Abordagem em três momentos da série; o personagem, a narrativa e a ironia. Engrenagens visíveis de uma coleção sobre a humanidade.
Livros de amor, filosofia, intriga, busca, redenção, júbilo, glória, esplendor, drama, política, literatura, revolução, esperança, geometria, sensualidade, poesia e principalmente pinturas.
Em resumo, um épico, uma saga, uma aventura, uma odisséia.
Entender como a ironia, motor do trabalho, funciona em seus mais sortidos aspectos ressignificando constantemente seu conteúdo e forma.

Um mundo diversificado e amplo de imagens em precisa fusão com a palavra, inseridos em um personagem, bípede (o leitor).

Abstract

How I Became a Biped or Political Problems of Being a Biped Series:
Fourteen books-notebooks of various shapes and contents.
A three-moment approach of the series - the character, the narrative and the irony.

Visible mashes of a collection about humanity.
Love books, philosophy, intrigue, seek, redemption, glee, glory, splendor, drama, politics, literature, revolution, hope, geometry, sensuality, poetry and most of all painting.
Briefly, an epic, a saga, an adventure, an odyssey.

Understanding how irony - the essay's motive – works on its most differents variants, constantly resignifying its content and shape.

A diversified world full of images in accurate fusion with the word, inserted in a character, biped (the reader).

Sumário





1 Primeira Introdução 14
1.1 Segundo Prólogo: uma breve apresentação do herói 15
1.2 Sobre o texto 23


2 Como me tornei estúpido 25
2.1 Da apropriação (algo como “utilizar livros para fazer Livros”) 29
2.2 Suporte-me 41
a) A relação do espectador com a obra: 42
b) Narrativa Seqüencial: 43
2.3 A aparência do suporte: os livros, cadernos e blocos. 45
2.4 Da forma e da temática obsessiva: 51
2.4.1 O uso do verbo: 52
2.4.2 A utilização da Fotografia: 57
2.4.3 Rasuras, bigodes acrescentados e dentes retirados: 62
2.4.4 Malevich e a supressão da inteligência: 64
2.4.5 O Bípede Didático 68
2.4.6 Sexo 70




3 O Personagem 74
3.1 O funcionário-autônomo e o Flânerie-Manco. 78
3.2 Sorria e o personagem irá sorrir com você. Chore, e você irá chorar sozinho.83
3.3 O Bípede como personagem-narrador 87
3.3.1 Das narrativas 88
3.4 Por que narrar? 93
3.5 O Bípede como personagem existencial 96
3.6 O Bípede como personagem conceitual ou figura estética? 98

4 O Sistema geral que rege a série 102
4.1 O Bípede e a ironia 102
4.2 Dada is Dead. Dada is Dad! 112
4.3 A essência irônica do suporte: a Ressignificação: 117

5 Considerações finais 122

Anexos 129

6 Referências Bibliográficas 144

Não se sente nada, a não ser um automatismo cá embaixo, a fazer umas pernas que nos pertencem levar a bater no chão, na marcha involuntária, uns pés que se sentem dentro dos sapatos. Nem isto se sente talvez.
Fernando Pessoa




As pernas
Ora, enquanto eu pensava naquela gente iam-me as pernas levando ruas abaixo, de modo que insensìvelmente me achei à porta do Hotel Pharoux. De costume jantava aí; mas não tendo deliberadamente andado, nenhum merecimento da ação me cabe, e sim às pernas, que a fizeram. Abençoadas pernas! E há quem vos trate com desdém ou indiferença. Eu mesmo, até então, tinha-vos em má conta, zangava-me quando vos fatigáveis, quando não podíeis ir além de certo ponto, e me deixáveis com o desejo a avoaçar, à semelhança de galinha atada pelos pés
(...)
– E cumpristes à risca o vosso propósito, amáveis pernas, o que me obriga a imortalizar-vos nesta página.
Machado de Assis

O que fazia com que a satisfação já não lhe bastasse era a espécie de dura tenacidade que, como primeiro passo geral, foi se tornando sua atitude à medida que desciam devagar a encosta. Eles eretos, os cavalos bamboleando as ilhargas. Clarice



1 Primeira Introdução
Apesar de Bípede, não danço.
Que Maiakovsky confessasse haver escrito um de seus livros para cem leitores, coisa é que admira e consterna. O que não admira, nem provavelmente consternará é se estes livros não tiverem os cem leitores de Maiakóvsky, nem cinqüenta, nem vinte e, quando muito, doze. Dez? Talvez cinco. Trata-se, na verdade, de uma obra difusa, na qual eu, O Bípede, se adotei a forma livre de um Basquiat, ou “tristeza de vala” de um Fernando Pessoa, não sei se lhe meti algumas rabugens ácidas de ironia. Pode ser. Obra de Bípede. Escrevi-a com a pena da galhofa e a tinta da revolta, e não é difícil antever o que poderá sair desse conúbio. A revolta é sempre engraçada, e a galhofa me faz rir às vezes. Acresce que a gente grave não achará nos livros seu romance usual, ao passo que a gente frívola achará neles umas aparências de puro romance; ei-lo aí fica privado da estima dos graves e do amor dos frívolos, que são as duas colunas máximas da opinião.
Mas eu ainda espero angariar as simpatias da opinião, e o primeiro remédio é fugir a um prólogo explícito e longo. O melhor prólogo é o que contém menos coisas, ou o que as diz de um jeito obscuro e truncado. Conseguintemente, contarei adiante os processos extraordinários que empreguei na composição destes quatorze livros, trabalhados cá com apenas duas pernas. Será curioso, e extenso, e aliás, proveitosamente desnecessário ao entendimento da obra. Melhor seria explicar como me tornei Bípede. Por isso, e obra em si mesma é tudo: se te agradar, fino leitor, pago-me da tarefa; se te não agradar, pago-te com uma dança, e adeus.

1.1 Segundo Prólogo: uma breve apresentação do herói

O Bípede! Defensor das Nuvens e Oprimidos!

Queria um prólogo assim. E assim quisera eu, o Bípede, ter quatro pernas para sempre, mas não deu. Antes de me tornar Bípede meu patrão (eu, o autor) chamava-me por um nome triplo: Ingênuo-problemático e apaixonado. Anteriormente, mais do que antes um pouco, tive dois nomes duplos: Chamava-me de Estraga-Night (Destruidor de Noites e Festas) e mais anteriormente ainda eu mesmo me chamava Noite-Mary (Pesadelo em inglês).
Assim sou depois de durante. Mas mais bípede. Quer dizer, somente Bípede. É assim que sou.
O Bípede é a voz dos mudos e as pernas do cego, antes de cego. Não tenho nome na massa. Em inglês, me chamam Rider; 1. someone who rides a horse, biclycle etc. 2. a statement that is added, especially to an offical decision or judgment. Na verdade, posso dizer com todo orgulho minha história, mesmo sabendo que é aproximadamente perto de totalmente inútil relacionar minha história com o que sou.
É necessário saberem o que sou claramente, sem névoas, grandes tropeços e gigantes nebulosas. O que é o “Bípede”, personagem principal da série “Como Me Tornei Bípede ou Os Problemas Políticos de Ser Bípede”?
Enquanto o mundo se enche de nuvens, principalmente na Palestina, resolvi voar, apesar de bípede. Voando, aproveitei que estava no espaço e lembrei do tempo e de quando me tornei bípede. Busco a explicação na confusão, no tumulto, na turba.
O glorioso período Bípede compreende os anos 2001 a 2007 de nossa Era. É um personagem criado no ano do novo século que começou no dia 11 de setembro de 2001. Uns dirão que anos bons são, outros dirão que foram só explosão.
O certo é que nuvens de mil graus varreram esses anos, apesar de dormir bem todos os dias no silêncio do bairro. O certo é que posso afirmar que me tornei bípede enquanto outros perdiam pernas. Afeganistão em outubro (Operação “Liberdade Duradoura”), 26 de outubro é votado o Patriot Act no Congresso Americano, que restringe as liberdades, 11 de Outubro de 2002 o Congresso americano autoriza o recurso à força armada contra o Iraque e 20 de março de 2003 começa a operação “Liberdade Iraquiana”. Em 2005 chega a 2000 o número de soldados americanos mortos no Iraque e aproximadamente 100.000 civis iraquianos (maioria mulheres e crianças).
As nuvens parecem feitas de carne às vezes. Às vezes é um material mais morto. Morto ou carne, há a nuvem. De 1945 para cá, a sombra da aniquilação final paira sobre o destino da humanidade, sob a forma de uma ameaçadora nuvem em forma de cogumelo. Não ligamos mais. Antes risos do que prantos descrever. Sou de uma geração que vive bem sem nuvens e cogumelos. Não ligamos para nada e nada liga para nós (somos carentes...).
De tão sem graça o mundo , tivemos que inventar algo para rir segurando a barriga enorme (dos outros). Rir como se ri da expressão “Como dar arma para macaco ”. Somos assim. Temos certeza absoluta de que o único que se libertou na Revolução Industrial foi o cavalo . Que a arte da paisagem não poderia ter nascido no deserto . Que Michelangelo esculpia em belos Mármores Escarrara (bem esverdeados) . Que a dor é vida . Que é impossível comer o bolo sem o perder . Que todo sindicalista que se preza sabe que “contra a direita e a elite, revolução é malevich ”. Que Nanoarte é uma arte menor e rolamos de rir com isso. Toulouse Lautrec é Too Loser Lautrec! (Muito Perdedor Lautrec!! Com voz de Chuck D. ), Morandi não passa de uma conjugação do verbo morar (exemplo: Estou Morandi mal ), andamos por aí saltitando e explicando que na natureza nada se cria, tudo se copia e chamamos MarK Rothko de Arrothko, pois para nós se assemelha mais ao som que ocorre quando gases do estômago são expelidos através da boca para narrar os dramas da humanidade numa época de guerras e revoluções. Sorridentes, somos assim, uma fila sem fim de demônios descontentes.
Explicado tão bem assim quem sou, penso que seria proveitoso dizer o que realizei com muito grado e litros de suco de suor de suvaco. O Bípede, disse eu, o autor, foi o primeiro a achar os quatro cantos da nuvem. Tarefa impossível, e só o impossível acontece, li em um muro. Melhor dizendo: originalmente o Bípede somente foi criado para ser o primeiro homem apto a domesticar as nuvens e assim ser o pseudônimo revolucionário do autor para o trabalho Nuvem :

Não iremos aqui nos alongar na questão da “Nuvem” por ser este trabalho talvez mais vasto, mais amplo e mais complexo que esta série. Porém é importante sabermos o que é a “Nuvem” sempre presente no romance bípede. A melhor maneira de explicar em um curto espaço, o que é a “Nuvem” é explicar o que é a nuvem. Duas pertinentes explicações sobre nuvem seguem abaixo:

Sendo um elemento pictórico privilegiado na relação com a cor, dado a sua configuração instável, sem contorno e também sem cor, assim como uma simples mancha, a nuvem admite todas as formas e todas as cores.

A nuvem, imagem da indeterminação, indecisa entre ser água e ser ar, expressa admiravelmente o caráter ambivalente dos signos e dos símbolos .

A Via Láctea é uma nuvem, uma forma gasosa que voltará a ser água. A nuvem é o desejo antes de sua cristalização: não é corpo, mas seu fantasma, a idéia fixa que deixou de ser idéia e não é ainda realidade sensível.
Nossa imaginação erótica produz sem cessar nuvens, fantasmas. A nuvem é o véu que mais revela do que oculta, o lugar da dissipação das formas e o de seu nascimento. É a metamorfose .

Ao criar esta forma “Nuvem” utilizei um mecanismo muito crucial ao modernismo:
O espaço é a realidade como vem colocada e experimentada pela consciência, e a consciência, se não abarcar e unificar o objeto e o sujeito da experiência, não é total. É o que podemos chamar de Postulado de Cézanne:
A Nuvem realiza figurativamente o espaço partindo das coisas; apenas quando as coisas desaparecem, dissolvendo-se no esquema geométrico, é que se pode dizer que o espaço existe no quadro, isto é, a realidade é experimentada pela consciência que a recebe de dentro, porque a consciência também é a realidade .
Se o Bípede é o resultado de uma metamorfose, a Nuvem é a própria metamorfose. A Nuvem é uma ironia sobre o irônico conceito de nuvem.
Logicamente o Bípede surgiu depois do trabalho Nuvem, pois somente depois de capturada é que a Nuvem precisou de um capturador. Como o Bípede permaneceu de pé, mesmo depois dessa gigantesca e ingrata tarefa bem cumprida, resolvi dar-lhe voz em uma série de quatorze livros.
Com voz, e animado pela esperança de ser particularmente útil à juventude e de contribuir para o escárnio dos costumes em geral, o bípede formou a presente coleção de máximas, conselhos e preceitos, que são a base daquela moral universal tão adequada à felicidade espiritual e temporal de todos os homens de qualquer idade, estado e condição que sejam, e à prosperidade e boa ordem, não só da república civil e cristã em que vivemos, mas também de qualquer outra república ou governo que os filósofos mais especulativos e profundos do orbe queiram discorrer!
Mas tenho bem forte aqui comigo que minha voz é muda e minhas pernas fracas, e que vou cair .
Todo bípede sabe da divisão das coisas. As coisas se dividem em diversas coisas. As coisas sutis e grosseiras, as coisas que têm forma e o que é informe, e entre as que têm apoio e as que não tem apoio . O bípede informa que está na categoria das coisas grosseiras que tem apoio sutil de duas pernas magras.
A metáfora que este personagem fez de si próprio é propositalmente vasta, ampla e cansativa, como as metáforas, por isso vamos ser breves nesta explicação:
O Bípede é a humanidade inteira sobre duas únicas pernas somente:
"UBUNTU UNGAMNTU NGANYE ABANTU" ("Pessoas são pessoas através de outras pessoas" -Ditado Xhosa)
Assim me livrei de explicar quem sou me anulando na massa.
Mas, chegando perto do final deste longo segundo prólogo, começo a arrepender-me deste personagem. Não que ele me canse; eu não tenho nada para fazer; e, realmente expedir algumas magras máximas, conselhos e preceitos para este mundo cruel sempre é tarefa que distrai um pouco da existência pesada. Mas o personagem é enfadonho, cheira a ave e traz certa criatividade requentada de circo; vício grave, e aliás ínfimo, porque o maior defeito deste personagem és tu, leitor. Tu tens pressa de envelhecer, e o personagem anda devagar; tu amas a narração direita e nutrida, o estilo regular e fluente, e esse personagem e o meu estilo são como os ébrios, guinam à direita e à esquerda, andam e param, resmungam, urram, gargalham, ameaçam o céu, escorregam e caem...
E caem!
E caem todos, assim como eu, que por ser só Bípede, caio.
E esta é a grande vantagem de ser Bípede: Se não tenho mais pernas para me equilibrar, também não tenho mais para lamentar, em caso de furtos, perdas ou danos.

1.2 Sobre o texto:
Esta dissertação irá se fincar em 3 pernas, na carência de mais (pernas) ou no desejo de menos (pernas). O suporte, o personagem e sua narrativa, e como esse personagem exerce no “palco” esta ironia (assim como a ironia e o personagem que o próprio palco também é). Em outras palavras: esses três capítulos são sobre uma pessoa-autor narrada pelo autor-pessoa, que expropria livros, travestido de humanidade. Muito poético e pouco esclarecedor agora, mas ao final desta dissertação, espero que vejam estes quatorze livros muito mais poéticos e esta dissertação relativamente esclarecedora .

Capítulo I – O suporte
Capítulo II – O personagem e a narrativa
Capítulo III – A Ironia (e a “Resignificação”)

Importante:
O método utilizado nesta dissertação é similar ao utilizado nos Quatorze Livros da Serie Como Me Tornei Bípede (p.129): o jogo de palavras, as metáforas, os momentos “vulgares” e grosseirões e principalmente: a apropriação e adaptação de alguns textos para “meu próprio” uso estão presentes aqui também.
Textos como a introdução do “Livro do Desassossego” escrito por Richard Zenith foram apropriados e adaptados em sua quase totalidade em diversos trechos da dissertação, devido a uma bizarra semelhança desse livro com esta série de quatorze livros sobre uma metamorfose. Assim também ocorreu com o primeiro prólogo, adaptado de Machado de Assis em “Memórias Póstumas de Brás Cubas” e com Argan (Arte Moderna, p. 504) em um texto sobre Morandi e o Postulado de Cézanne, que a Nuvem encaixou como uma luva.

2 Como me tornei estúpido


Como me tornei estúpido





































“Faltou inteligência no Bípede”

Este comentário de Carlos Zílio sobre o livro Av.Rio Branco com Araújo Porto Alegre” e utilizada no próprio livro (imagem acima) resume o que se pretende dizer sobre essa “inteligência” bípede; um tipo de inteligência propositalmente errada. O raciocínio burro. Um entendimento do mundo completamente equivocado, melhor dizendo; um entendimento contrário do mundo. Historicamente os entendimentos claros e corretos do mundo, já nos tiraram das cavernas, controlaram o fogo, fizeram ferramentas e finalmente nos fez supremos em todo o planeta.
Mas hoje, a inteligência só nos aponta seu caráter nefasto em forma de cogumelo radioativo, extermínios e aquecimento global. Em relação ao indivíduo então, aí mesmo que ela se torna mais maligna, pois ao contrário de “melhorar” a existência, ao compreender melhor o mundo, ela isola e afunda o indivíduo no desespero. A inteligência não atenua o peso da existência, e sim se torna o maior de todos os pesos:
“KNOWLEDGE BRINGS FEAR”. “O conhecimento traz medo” está escrito no letreiro da “Universidade de Marte” no desenho Futurama[1]. Mas não é só medo que a inteligência e o conhecimento nos dias de hoje nos trazem:
O álcool ocupa totalmente o pensamento e dá fim ao desespero: cura. (...) Os alcoólatras são compreendidos, são cuidados, têm uma consideração médica, humana. Ao passo que ninguém pensa em compadecer-se das pessoas inteligentes: “Ele observa os comportamentos humanos e isso deve fazer dele uma pessoa muito infeliz”, “Minha sobrinha é inteligente, mas é uma pessoa muito boa. Ela quer sair disso”, “Por um momento, tive medo de que você se tornasse inteligente” (...) a inteligência é um duplo mal: ela faz sofrer, e ninguém se dá ao trabalho de considerá-la uma doença. [2]

Por esses motivos relacionados, a pouca atividade cerebral do bípede é uma questão de sobrevivência: O Bípede é um desequilíbrio. Se o Bípede pudesse pensar, cairia.
Existe uma diversidade de entendimentos “sem inteligência” nesta série bípede. Além das “frases-força” completamente absurdas, sem nexo na realidade, o bípede desfila seu não-entendimento de uma série de categorias.
A geometria é parte fundamental do personagem e seu cenário nos livros, mas dela não se entende nada e ainda faz-se constantes referências ao suprematismo e Malevich. Quadrados, cubos, horizontais e verticais, além do próprio Malevich surgem de maneiras bizarras nas páginas de diversos livros. E por não entender nada de suprematismo, utiliza a geometria para criar um mundo abarrotado de objetos e cenas inúteis. É um entendimento propositalmente quadrúpede do conceito de geometria de Malevich. Hoje, da História da Arte e da vanguarda da União Soviética, só nos restou o humor.



[1] GROENING, Matt. MARS UNIVERSITY in Futurama – Twentieth Century Fox Television, 1999. Primeira Temporada
[2] PAGE, Martin. Como Me Tornei Estúpido.Rio de Janeiro: Editora Rocco, 2001, p.16

nem tudo é nebuloso


Nem sempre tudo é nebuloso. Diversas vezes surge nas páginas um tipo de “bula”. A palavra Bípede refere-se não tanto a uma perturbação existencial no homem como à inquietação e incerteza inerentes em tudo e agora destiladas no narrador retórico.
Existe um aspecto teórico e até pedagógico, tendência muito presente em meus trabalhos. Assim, ao lado de trechos oníricos surgem trechos que explicam o como e o porquê dos sonhos, da narrativa, do personagem e do autor. Este caráter didático se mistura com uma postura auto-crítica do autor em relação à sua produção, em tempo real:


Sexo

!!!!!!!!!!!!!

A “celebração da putaria” que temos presente constantemente, é um tipo de violência[1] (des)necessária[2]:

Ao se cristalizar em padrões culturais, o conhecimento carnal fornece material inesgotável para o pensamento, especialmente quando aparece em narrativas: piadas sujas, bravatas masculinas, fofocas femininas, canções licenciosas e romances eróticos. Sobre todas essas formas, o sexo não é apenas um tema mas também um instrumento para rasgar o véu que cobre as coisas e explorar seu funcionamento interno. Ele serve assim às pessoas comuns, como a lógica serve aos filósofos: ajuda a extrair sentido das coisas.[3]

A putaria que fagocita em partes o eu-lírico-bípede, surge nas páginas como um evento. Há nessa “celebração da putaria” uma auto-destruição consciente e medida de toda a poética “lírica” – sem a qual nenhum dos dois iria existir em “harmonia” na narrativa.

A eterna poesia de parede de banheiro de todas as épocas: "Aqui dorme Bocage, o putanheiro; Passou vida folgada, e milagrosa; Comeu, bebeu e fodeu sem ter dinheiro".

Sexo, sonho, política, amor, risos, prantos, lamentos, geometria, o duplo, o plágio, a rasura, a pichação, os “erros de português que preservam a oralidade[4]” dos textos, a vida, o espaço e o tempo são algumas recorrências constante destes variados procedimentos de entendimentos do mundo encadernados:

Em O Pensamento Selvagem e outras obras, Lévi-Strauss argumenta que muitos povos não pensam à maneira dos filósofos, ou seja, manejando abstrações. Ao invés disso, pensam com as coisas – as coisas concretas da vida cotidiana, como as tatuagens e a disposição dos móveis (...) Assim como alguns materiais são próprios para serem manipulados, certas coisas são especialmente boas para serem pensadas (bonnes à penser): é impossível dispô-las em padrões que trazem à tona relações inéditas e definem limites antes vagos[5].”



[1] Independente da opinião do leitor, entre necessária ou não, a forma como o sexo surge neste trabalho é superficialmente agressiva, profundamente vulgar e perfeitamente desnecessária.

[2] “Como eu tenho o péssimo costume de não falar sobre sexo, vivo procurando outros meios para me destacar e claro que nunca consigo porque é realmente difícil competir a atenção com alguém que está sem as calças. Não é verdade? Todo mundo acha muito legal, muito descolado falar sobre sexo na frente dos outros, muito natural, porque, alôoo, estamos no século XXI e etc., mas eu acho tão inconveniente falar sobre pinto e bunda. Será que só eu acho isso? Será que só eu acho de mau gosto uma conversa sobre pinto e bunda? Pra mim é estranho entender como alguém, tendo todos os assuntos do mundo, resolve falar sobre pinto e sobre bunda. A esta altura, minhas leitoras moderninhas já estão pensando “vai ordenhar vaca, ô puritano filho-da-puta”, mas não é puritanismo, não recrimino o sexo. Só acho que as pessoas deveriam ter a tendência natural de evitar falar sobre isso, como deveriam ter a tendência natural de evitar comer com os pés. Só isso.” . Disponível em BLOOM, Edward. Introibo ad Altare Dei. http://iaad.blogspot.com/. Acessado em 25 fev. 2007, 21:40.

[3] DARNTON, R. Sexo dá o que pensar. In NOVAES, Adauto (org.)Libertinos e Libertários. São Paulo:Editora Companhia das Letras, 1996. Pg.21.

[4] RIBEIRO, João Ubaldo. Casa dos Budas Ditosos. Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 1999, p.11.

[5] DARNTON, R. Sexo dá o que pensar. In NOVAES, Adauto (org.) Libertinos e Libertários. São Paulo:Editora Companhia das Letras, 1996. Pg.21

O Personagem






3. O Personagem
(Eu (ele (o autor)))
Gustavo Speridião não existe, propriamente falando. Quem nos disse foi O Bípede, um dos personagens inventados por mim para me poupar o esforço e o incômodo de viver. E para me poupar o esforço de explicar para mim mesmo o mundo confuso e nebuloso tal qual se apresenta no início do século vinte e um, inventei a série “Como Me Tornei Bípede ou Os problemas políticos de ser Bípede”, que busca explicar como me tornei Bípede ou quais são os problemas políticos de ser Bípede. Esta explicação nunca existiu, propriamente falando, e nunca poderá existir . O que temos nesta série não são livros mas a sua subversão e negação, o livro em potência, o livro em plena ruína, o livro-sonho, o livro-desespero, o antilivro, além de qualquer literatura. O que temos nestas páginas é a dupla relação entre personagem-narrador na sua nudez máxima.
A falta de um centro, a relativização de tudo (inclusive da própria noção de “relativo”), o mundo todo reduzido a fragmentos que não fazem um verdadeiro todo, apenas imagem sobre imagem sobre texto sobre papel sem nenhum significado e quase sem nexo e também de duplos significados e infinitas conecções - todo esse sonho ou pesadelo pós-modernista não foi, para mim, um grandioso (no sentido quantitativo) discurso aleatório. Foi a minha íntima experiência racional e tênue realidade ficcional. E este livro-diário de um Bípede foi meu testemunho, lucidíssimo:

25 anos em frente ao porto. nunca parti.


Estas ruínas de livros, se sustentam principalmente em duas posturas desiguais e combinadas de ver aquilo que abstratamente todos chamam de vida: Ironia e Existencialismo. Este tipo de ironia existencial pode ser sintetizado – para melhor esclarecer – na seguinte frase: “Não se pode comer o bolo sem o perder”
Esta frase de Fernando Pessoa, no Livro do Desassossego, contém em si toda a potência da ironia e toda aquela angústia existencial que se costuma sentir no centro da cidade domingo de tarde, ou contemplando uma tigela vazia.
Estes livros-sonho – assim como os sonhos – são auto-explicativos em diversas passagens (caráter didático) sendo isso mais um elemento contraditório dos livros.
A fragmentação é o ritmo do trabalho. A este respeito, o da fragmentação permanente, eu e o Bípede ficamos sempre fiéis aos nossos princípios. Se faço o papel de dezenas de autores diferentes que se contradizem uns aos outros, e mesmo a si próprios, o Bípede também foi um multiplicar-se constante podendo dizer que temos Doze Bípedes, todos incertos e vacilantes, todos contraditórios entre si.
O Bípede nasceu, capturou a nuvem e depois disso, desempregado e sem enredo ou plano para cumprir, viu seus horizontes alargando, os seus confins ficarem cada vez mais incertos, a sua existência enquanto personagem cada vez menos viável. Está aí, nesse “limbo” a explicação para o começo de um romance. O romance de um fracasso.
O Bípede, o narrador principal mas não exclusivo dos Quatorze livros, era tão próximo de mim que não podia considerar-se um semi-heterônimo autônomo. “É um “semiheterónimo” melhor dizendo, porque, não sendo a personalidade a minha, é, não diferente da minha, mas uma simples mutilação dela”. Disse eu mesmo. Não há dúvida de que muitas das reflexões estéticas e existenciais do Bípede fariam parte de uma autobiografia, se tivesse escrito uma, mas não devemos confundir a criatura com o seu criador. O Bípede não é uma réplica minha, nem sequer em miniatura, mas sou eu mutilado, com elementos em falta. (Se o Bípede utilizar o mesmo argumento a sentença deve ser considerada verdadeira).

O funcionário-autônomo e o Flânerie-Manco

3.1 O funcionário-autônomo e o Flânerie-Manco.

Duas existências desiguais e combinadas[1] dois fatos desigualmente combinados: eu trabalho em um museu, preenchendo formulários e colocando números em obras de arte oficiais (número de tombo) enquanto o Bípede anda por aí aos tombos[2] renomeando e ressignificando o mundo (entendendo mundo como tudo menos os museus).

Quanto a vida interior dos dois, o Bípede toma a do seu progenitor como modelo:



[1] A ironia está contida na combinação desigual e a combinação desigual é o princípio destes trabalhos.

[2] A dificuldade de equilíbrio é tema constante dos Quatorze livros.






O Bípede, de tão livre semi-heterônimo, cria também seus personagens[1]. Mas o que é isto? Podemos dar fé a esta afirmação – que o Bípede também tinha heterônimos? Não serei eu que neste trecho estou a falar? E não sou eu que confesso:


[1] Imagem e texto relacionando os personagens, como por exemplo o quadrado.









A verdade é que estou muito aquém do Bípede completo. A série Bipede foi, antes de tudo, vários livros (e afinal só um) de vários autores (e afinal só um), e a própria palavra Bípede muda de significado com o decorrer de um livro e no decorrer de todos os Quatorze livros. Tudo isso escapa constantemente de meu controle. O Bípede somente é chamado de Bípede na falta de um nome mais abrangente, mesmo sabendo que é um personagem muito restrito à suas duas pernas.
Sobre esta, entre outras abrangências
Homem Muito Abrangente. Tão abrangente que quase total. Mas falta-lhe um quê de si mesmo. Procura-se, mas sempre em vão (o Homem Muito Abrangente ocupa todos os vãos). E, no entanto, é sem volta. Sua perda é de origem, origem tão abrangente que nada nele é final (já se disse que o seu fim não é um fim em si mesmo). Como todo homem digno (a quem Pico dedicou uma oração) tem algo de camaleão. Carece de individualidade, não tem uma vocação, nem sequer uma aparência. Parece-se, ao que parece. Singular, é plural. Pode ser todas as coisas, fazendo tudo que quer. No entanto, lhe é vetada uma única ocupação: a própria. Sua única propriedade é não ter nada de próprio. Principalmente interior. Daí que é híbrido, impuro. Sempre além dos limites, o Homem Muito Abrangente é o mais puro exterior.

Mas o que subverteu, sobretudo, o projeto inicial deste Bípede foram as preocupações de ordem existencial, tanto no plano geral como no pessoal. Geral, porque pertenço a geração que começou pelo O Fim da HistóriaL e o último homem de Fukuyama (e na verdade viu a História começar no fim das duas torres gêmeas em NY 2001) e pessoal porque cada um, ficou só, com suas duas pernas somente, os “eu-mesmistas ”. Embora a vida, eternamente absurda, me provoque uma desconfortante revolta (sendo uma das características mais presentes no livro) não consigo deixar de a sentir e assim escrever estas doze ficções autobiográficas.