24.7.09

O funcionário-autônomo e o Flânerie-Manco

3.1 O funcionário-autônomo e o Flânerie-Manco.

Duas existências desiguais e combinadas[1] dois fatos desigualmente combinados: eu trabalho em um museu, preenchendo formulários e colocando números em obras de arte oficiais (número de tombo) enquanto o Bípede anda por aí aos tombos[2] renomeando e ressignificando o mundo (entendendo mundo como tudo menos os museus).

Quanto a vida interior dos dois, o Bípede toma a do seu progenitor como modelo:



[1] A ironia está contida na combinação desigual e a combinação desigual é o princípio destes trabalhos.

[2] A dificuldade de equilíbrio é tema constante dos Quatorze livros.






O Bípede, de tão livre semi-heterônimo, cria também seus personagens[1]. Mas o que é isto? Podemos dar fé a esta afirmação – que o Bípede também tinha heterônimos? Não serei eu que neste trecho estou a falar? E não sou eu que confesso:


[1] Imagem e texto relacionando os personagens, como por exemplo o quadrado.









A verdade é que estou muito aquém do Bípede completo. A série Bipede foi, antes de tudo, vários livros (e afinal só um) de vários autores (e afinal só um), e a própria palavra Bípede muda de significado com o decorrer de um livro e no decorrer de todos os Quatorze livros. Tudo isso escapa constantemente de meu controle. O Bípede somente é chamado de Bípede na falta de um nome mais abrangente, mesmo sabendo que é um personagem muito restrito à suas duas pernas.
Sobre esta, entre outras abrangências
Homem Muito Abrangente. Tão abrangente que quase total. Mas falta-lhe um quê de si mesmo. Procura-se, mas sempre em vão (o Homem Muito Abrangente ocupa todos os vãos). E, no entanto, é sem volta. Sua perda é de origem, origem tão abrangente que nada nele é final (já se disse que o seu fim não é um fim em si mesmo). Como todo homem digno (a quem Pico dedicou uma oração) tem algo de camaleão. Carece de individualidade, não tem uma vocação, nem sequer uma aparência. Parece-se, ao que parece. Singular, é plural. Pode ser todas as coisas, fazendo tudo que quer. No entanto, lhe é vetada uma única ocupação: a própria. Sua única propriedade é não ter nada de próprio. Principalmente interior. Daí que é híbrido, impuro. Sempre além dos limites, o Homem Muito Abrangente é o mais puro exterior.

Mas o que subverteu, sobretudo, o projeto inicial deste Bípede foram as preocupações de ordem existencial, tanto no plano geral como no pessoal. Geral, porque pertenço a geração que começou pelo O Fim da HistóriaL e o último homem de Fukuyama (e na verdade viu a História começar no fim das duas torres gêmeas em NY 2001) e pessoal porque cada um, ficou só, com suas duas pernas somente, os “eu-mesmistas ”. Embora a vida, eternamente absurda, me provoque uma desconfortante revolta (sendo uma das características mais presentes no livro) não consigo deixar de a sentir e assim escrever estas doze ficções autobiográficas.