24.7.09

Considerações finais

a) Uma primeira e esclarecedora conclusão:

• O Bípede é um desequilíbrio. Se o Bípede pudesse pensar, cairia.

• O Bípede é um desequilíbrio. Porém as longas distâncias que o Bípede tem que percorrer só, são curtas. E as curtas distâncias que tem que percorrer acompanhado, são eternas. E assim, o Bípede chamou as curtas distâncias acompanhadas de amor. Todo Bípede no período de curtas distâncias é um quadrúpede.

• O quadrúpede não se sabe o que é. Sabe-se que o Bípede pode ser um quadrúpede por alguns momentos longos e curtos. O quadrúpede também poderia ser Bípede, mas fica exausto sempre.

• O Bípede é um equilíbrio duvidoso. A dúvida sempre se encerra quando o Bípede deita. Todo Bípede sabe que a horizontal é sua posição definitiva.

• Duas pernas são muito pouco para as enormes tarefas delegadas ao Bípede. E por mais que Ele as recuse, elas são aceitas.

• Por ter apenas duas pernas fracas e dois braços magros, os bípedes precisam carregar constantemente três coisas: as coisas, as informações sobre as coisas e todas as coisas e informações que as coisas produzem. Todas as três coisas foram criadas pelo Bípede mas ele não sabe disso e afirmaria, se soubesse, que é mentira.
• O sonho do Bípede é não existir nada para levar.

• A maior vitória do Bípede contém a sua maior derrota; não saber qual foi sua vitória.

• O Bípede por temer tanto a horizontal acabou transformando a vertical no seu horizonte e assim criou-se um grande conflito.

• O conflito é a essência do Bípede, que ao se deparar com duas pernas independentes, viu que podia dançar, mas nunca o quis.

• A independência das pernas do Bípede sempre incomodou ao extremo os quadrúpedes, mas nada puderam fazer a este respeito. O Bípede pôde fazer muito a este respeito, mas duas pernas causam despeito.

• Desde que o Bípede se tornou bípede, viveu matematicamente na base dois. Duas cabeças, duas pernas, dois braços, dois olhos, duas orelhas e dois orifícios nasais. Até mesmo na boca e no ânus (únicos) conseguiu buscar um papel duplo. A essência do Bípede é buscar o duplo, mesmo que este seja negativo. A essência do Bípede é buscar o duplo, mesmo que este esteja em um.

• Ao apoiar-se em duas pernas o Bípede muito lentamente percebeu que suas mãos livres só serviam para acenar adeus. Sendo assim, passou a dar adeus para tudo.

• Ao apoiar-se em duas pernas o Bípede muito rapidamente percebeu que suas mãos livres também serviam para sentir o coração bater. Lentamente passou a gostar mais do pulmão.

• Ao apoiar-se em duas pernas o Bípede imediatamente começou a se masturbar freneticamente. Foi o dia em que se apaixonou definitivamente pelas mãos e se divorciou dos pés.

• Sobre os bípedes que voam, o Bípede sempre deu de ombros, repetidas e infinitas vezes até a exaustão total e completa, na triste vontade de libertar as duas pernas do chão. Conseguiu, mas sabe que trapaceou.

• O Bípede não inventou as regras de seu próprio jogo, mas logo jovem se viu um ótimo trapaceiro.

• Quisera o Bípede ser um polvo, mas vinte dedos ultrapassaram o limite.

• O Bípede nunca entendeu o cabelo.

• O Bípede raramente consegue cavar abismos com os próprios pés.

• O Bípede criou um mundo a sua imagem e semelhança, mesmo não gostando de sua imagem e aparência.

• O tempo passou a existir para o Bípede quando.

• O espaço nunca existiu para o Bípede. No lugar dele o Bípede inventou o cansaço. Todo espaço cansa o Bípede.

• E quando perguntaram ao Bípede sobre o tempo e o espaço ele chorou. Até os quadrúpedes ficaram envergonhados.

• O Bípede veio da água como todos sabem. Por isso o choro é perdoável.

• O Bípede causa risos em todos os bípedes e quadrúpedes. Sendo assim, mandou matar todos.

• Quando o Bípede tornou-se mortal, ficou de pé.

• Todo bípede tem medo de cair. O Bípede cai.

• Felizmente o Bípede começa a vida deitado.



b) Uma das possíveis classificações atuais dos livros, separa-os em duas categorias:livros de leitura seqüencial e obras de referência. Na categoria “leitura seqüencial” temos as memórias, romance, novela, poesia, teatro, biografia, história em quadrinhos
Já a categoria “obras de referência” inclui: anuário, bibliografia, dicionário, manual, enciclopédia, guia turístico, livro didático e relatório.

Dentro destas minhas narrativas “seqüenciais” que suportam duas pernas filosóficas em um suporte tão comum e usual; o livros, escondo-me atrás de uma máquina fotográfica ou uma caneta nanquim, desenvolvendo imagens narrativas com cenas domésticas, panoramas e flagrantes urbanos, demarcando o mundo e objetivando suas fricções. Este personagem tão eu, para me poupar a vergonha de ser eu, balança seu peso insuportável pela cidade, seu principal cenário, que quando a contempla não consegue parar de rir e assombrar (-se).
O bípede é um semi-heterônimo que ironiza a narrativa, ironiza-se como personagem e por final ironiza a ironia. O bípede ri do leitor ao não contar nada durante 14 livros e ao mesmo tempo deixar tão claro tudo que ele é:
O Bípede é um desequilíbrio. Se o Bípede pudesse pensar, cairia

Ao organizar estes 14 volumes, o autor não teve em mira, propriamente, selecionar livros pela qualidade, nem pelas fases de sua carreira bípede. Cuidou antes de localizar, na série, certas características, preocupações e tendências que a condicionam ou definem, em conjunto. A questão do “narrador-semi-heterônimo-irônico” me pareceu assim mais vertebrada e, por outro lado, espelho mais fiel.
Alguns livros caberiam em outra série que não fosse sobre personagens irônicos. A razão da escolha está neste tipo de romance específico que se formou nestes volumes, e que por uma arrumação ou engano, se transformou em odisséia romântica.
Esta é uma maneira de domesticar esta obra inquieta: encará-la como um romance. Daí que tenhamos, então, um diário íntimo, uma autobiografia escrita pelo personagem denominado bípede no Rio de Janeiro (e outras capitais mas principalmente o Rio de Janeiro). Contudo, o desassossego que pulsa nesta série reage dentro dessa jaula conceitual, obrigando-nos a reconhecer que se trata, na verdade, de um anti-romance. Sem fio narrativo consistente, sem fatos propriamente ditos e sem uma noção de tempo determinável, Como Me Tornei Bípede ou Os Problemas Políticos de Ser Bípede é antes uma coleção de estilhaços que sugerem ironias existenciais, apreensões fortuitas, devaneios, fulgurações, sondagem de repentinos enigmas, confissões privadas etc.
Tais insights destacáveis transbordam, verossímeis, ora da observação estática do personagem (bípede), ora da flânerie mecânica que o narrador empreende pelo Centro do Rio de Janeiro, ao mesmo tempo que mapeia uma outra ação – esta sim irônica por princípio – criar por trilhas já trilhadas e pavimentadas (os livros apropriados) os dementes rumos da percepção mental deste ser de duas pernas. Fiéis ao espírito desalinhavado com que se doaram à posteridade, estes fragmentos (produzidos entre 2001 e 2007) recusam, por isso mesmo, a costura tradicional do livro, impondo-se como cartas avulsas e embaralhadas, prontas a ganhar qualquer feição caleidoscópica, mas ao final, confinados na espiral das lombadas.
Mas, ainda que percorrido a esmo, os retalhos desta obra expõem sempre um bípede apegado à sua dupla condição: de um lado, ele é o plácido redator do livro-diário; de outro, é o escritor atormentado de uma existência solitária e sem brilho, para quem a única comunicação tolerável ocorre por meio da imagem escrita. E é bizarro que essa convicção converta o nosso desequilibrado bípede num impensável personagem kafkiano, em tudo grato pelo privilégio de gozar da burocrática indiferença dos quadrúpedes.
Isto que se poderia dizer um romance documental que faz fluir, em sua irônica prosa metódica, as perspectvias poéticas de toda a vasta população do autor, e através do bípede, parece ficcionar aquilo que teria sido privilégio psicológico e artístico meu. Nesse movimento de vertigem em torno do vácuo, do nada, ao redor de um eixo que não há, acabamos por nos dar conta de que o bípede – assim como o autor (eu (ele (o bípede))) – converte-se em personagem de seus próprios dramas. De maneira que só nos resta cogitar o seguinte: depois de ter escrito (ou vivido?) estes livros, o autor já não pode continuar a ter, ainda hoje, o direito de se proclamar (como esta página a fez) o mais triste livro do Rio de Janeiro?


28 anos em frente ao porto. Nunca parti.