24.7.09

O Bípede e a ironia

4.1 O Bípede e a ironia
O riso, declara Reinhold Niebuhr, é um dos mais excelentes sermões, uma espécie de terra de ninguém entre a fé e o desespero. Preservamos nossa sanidade rindo dos absurdos superficiais da vida, mas o riso se transforma em amargura e escárnio se dirigido para as irracionalidades mais profundas do mal e da morte. “É por isso”, ele conclui, “que há riso no vestíbulo do templo, o eco do riso no próprio templo, mas somente fé e oração, e nenhum riso, no santuário.

Ironia é uma questão de contexto e localização. O mecanismo irônico em meu trabalho poderia ser sintetizado na ironia presente no readymade – onde objeto, seu significado e localização formam as engrenagens para o trabalho funcionar.

Por mais que tenhamos afirmado que o Bípede é um personagem que busca respostas sobre suas questões existenciais, para nada isso quer dizer que o Bípede é um personagem depressivo ou triste , a ferramenta que utiliza o Bípede para observar o mundo e buscar tirar suas conclusões é a ironia e outros tipos de humor como o sarcasmo, a gargalhada e o deboche.
Da ironia podemos dizer que ela não necessariamente precisa ser engraçada; que provoque risos e gargalhadas, e sim precisa acionar, denunciar, explicitar as contradições inerentes a tudo: “Sorrir para não chorar ” É justamente nesta ironia existencial que se esconde um tipo de tristeza, banzo (de quê? Das outras duas pernas...), solidão e desconforto no mundo. Como o samba, que canta as tristezas da vida... sambando: “O samba é pai do prazer, o samba é filho da dor”
A ironia gruda nos livros de maneiras diversas, seja na tensão sobre a imagem e o texto, seja numa única frase ou numa única imagem.
Buscamos na literatura novamente o apoio para entendermos a ironia Bípede:
Ao considerar o silêncio ou todas as possibilidades de sentido ainda não expressas pela palavra poética, terreno para o qual a poesia volta incessantemente, Beda Allemann, autora de Ironia e poesia, reflete sobre uma ironia autenticamente poética.
A palavra literária apresenta o mundo como devir, o mundo sem particularidades, liberto e um sentido estável, o mundo em sua presença e ausência. Neste sentido, segundo a autora, a ironia, para ser poética, não surge do confronto entre idéias contrárias, mas do choque entre situações ou narrativas aparentemente descomprometidas entre si. Situações que, ao se aproximarem, pelo arranjo estrutural da narrativa, ganham um sentido novo.


A ironia poética não resulta tão somente da soma de frases ou segmentos irônicos. Seja num livro, foto, desenho ou texto regidos pelo princípio da ironia, toda e qualquer parte aparentemente não irônica se torna radicalmente irônica.
Diferente de um trabalho com frases irônicas (ironia verbal), o que eu busco é a ironia que é responsável pela relação entre o todo e as partes, em que cada parte é o todo pontualmente concentrado, criando uma ironia que a autora intitula de ironia poética estrutural.
A ironia poética tão fundamentalmente estrutural para o Bípede fica em evidência logo no título da série: Como Me Tornei Bípede ou Os Problemas Políticos de Ser Bípede.
Contrapondo-se à tradição ontológica, teológica e lógica a metafísica, F. Schlegel afirma que todo livro que não se contradiz é incompleto. Na visão do teórico, a ironia, ao invés de pregar a permanência do homem e a sua identidade com o outro, insere-o no mundo solitário, em que a única vereda que o levará a transformação de si mesmo e, consequentemente, do mundo, é a consciência do outro gerado no centro de sua própria subjetividade. A ironia na verdade, não é um instrumento de julgamento velado do outro, com base em um sistema fechado de interpretações de fatos. Segundo Beda Allemann, a grande contribuição de Nietzsche e Hardenberg é a de que as contradições próprias da vida não existem para serem superadas num estado de “perfeita consciência enciclopédica do mundo”, em que o homem assume para si todas as possibilidades existenciais – estado que o faria “querer ser um eco espiritual, (...) querer acolher em si todas as personalidades”
A ironia, é, pois, uma forma de conhecimento em que a contradição é consentida, e é justamente nessa contradição que se apóia o Bípede na busca por compreender a sua formação como Bípede. Na dialética poética da ironia, toda oposição antagônica se converte em oposição complementar. Não se admite separação lógica nem a síntese dialética dos contrários. Na dialética irônica, a tese e a antítese constituem uma unidade irredutivelmente dual.
Escrever ou pensar ironicamente significa intercambiar incessantemente os opostos complementares. A essência e a aparência, a realidade e a ilusão, a razão e a loucura, o bom e o mau, a vida e a morte, enfim, todos os pares de dualidade são concebidos como dois aspectos complementares do universo em que se exerce a experiência humana.



Para além da técnica da expectativa desiludida, em decorrência da não-satisfação do anseio pelo desfecho, a ironia do Bípede se manifesta ao não afirmar nem negar uma de suas idéias reciprocamente contraditórias. Este comportamento decorre do reconhecimento irônico de que tudo é complexo, de que a multiplicidade de perspectiva corresponde à complexidade das coisas e da totalidade do real. Compreende-se, também, o motivo pelo qual o narrador-personagem ironiza a motivação realista e a expectativa habitual do leitor, alegando que a função da arte é transfigurar e não simplesmente reproduzir a realidade construída.
Como fruto de uma relação de oposição imprevisível, a ironia a que se convencionou denominar ironia estrutural ou construtiva faz do sentido da narrativa um fluxo permanente de múltiplos sentidos.



A atitude irônica caracteriza-se por uma mobilidade ou agilidade interpretativa que conduz simultaneamente a duas ou mais possibilidades de sentido.
Ironia, eironeia, quer dizer questionamento, e, assim, há a subversão do efeito catártico do riso a toda e qualquer proposição pretensamente absoluta. A ironia ensina, enfim, que o homem já de si é um paradoxo, e que consequentemente só pode ser apreendido pela forma paradoxal da expressão irônica. A pluralidade própria a quem se engaja no exercício da ironia é expressa na seguinte observação de Beda Allemann:
Não se pode atingir um estão de espírito irônico sem uma especial capacidade de entender as relações que se entrelaçam em segredo, de intuir o que se desenvolve por trás dos bastidores.

Isto significa que a concepção tradicional da ironia – expressão cujo sentido escondido ou não revelado pela palavra é a correção de sentido ostensivo equivocado ou ingênuo – reformulou-se diante da ironia construtiva, que, ao invés de destruir o seu objeto ironizado, relativiza-o. A ironia não é a dissimulação de um sentido, mas uma atividade no mínimo dualista como expressão da concepção histórica de verdade. Desta forma, como fundamento da relação do homem com o mundo, a ironia, diferentemente daquela esporadicamente apropriada por quem se fixa numa posição superior aos indivíduos considerados ingênuos ou equivocados, contradiz ainda a concepção tradicional que aponta o sentimento de superioridade como essencial a ela. A ironia, enquanto mascaramento de sentido, incentiva tal sentimento, pois só aos iniciados é permitido o acesso ao sentido silenciado. Mas, enquanto relativização de sentido, a ironia arranca o ironista do Olimpo e insere-o no mundo onde todos são vítimas irremediáveis da grande ironia que é viver um real concebido como concretização de uma das possíveis formas de existência.
A ironia do Bípede acontece simplesmente a cada vez que o diálogo entre estas situações é acionado ao leitor. Neste sentido, nada tem a ver com a atitude irônica que define o narrador onisciente: este tudo saber a respeito do mundo e de suas contradições mais intimas, mas, por utilizar a ironia como instrumento para a sátira, finge não saber, vestindo a máscara da ignorância:
A ironia construtiva alude ao inexprimível, ao que poderia ter sido em cada micro narração, e confere à vida a instabilidade e a indeterminação que lhe são próprias.
Independente de um ironista (ironia verbal), a ironia estrutural se faz presente no choque entre sentidos antagônicos expressos na própria linguagem ou na tensão entre texto/imagem. A ambigüidade do mundo é incorporada à estruturação mesma da narrativa, que ora exalta, ora repulsa o mesmo tema.
Àqueles que condenam a ironia por privar o mundo de um sentido único e permanente, é preciso
(...) perguntar se temos alguma razão para supor que habitamos um mundo cuja plenitude de sentido a ironia poderia destruir ao invés de um mundo cuja ausência de sentido a ironia poderia tornar clara.

E finalmente, ficou claro que a ironia clareia a existência, quando Fernando Pessoa diz:
“Não se pode comer o bolo sem o perder. ”