24.7.09

Sorria e o personagem irá sorrir com você. Chore, e você irá chorar sozinho.

3.2 Sorria e o personagem irá sorrir com você. Chore, e você irá chorar sozinho.

Percebi que o projeto tinha escapado das minhas mãos (se é que algumas vez realmente o segurei), quando o Bípede começou a andar complexa e tortuosamente como se andasse pela sua própria vontade.
E deixei-o andar , às vezes posteriormente, para pisotear o que fiz, às vezes, anteriormente, para limpar o terreno que iria construir. Todos os Quatorze livros, sempre provisórios, indefinidos e em transição – são uma daquelas obras onde Forma e forma se misturam perfeitamente. Sempre narrando a intenção de rever e organizar os fragmentos, mas sem coragem ou paciência para enfrentar a tarefa, fui acrescentando material, e os parâmetros da obra amorfa dilatavam-se. Além dos textos irônicos e didáticos, juntei especulações filosóficas, credos estéticos, observações sociológicas, apreciações literárias, máximas e aforismos, e só por pouco não entraram mais considerações políticas panfletárias. Esta série tornou-se depósitos para muitas escritas e imagens nômades que não tinham outro paradeiro.
Mas é aí, na sua desarrumação irônica, no narrador ambíguo que se tem uma sincera busca de Como me tornei Bípede ou dos problemas políticos de ser Bípede. Foi um depósito, sim, mas um depósito organizado de ferramentas ora polidas ora brutas, adaptáveis a uma infinidade de jogos, graças à falta de ordem preestabelecida e liberdade imposta.
A sua incapacidade de constituir-se num livro uno e coerente conferiu-lhe a possibilidade de ser muitos, e nenhum trabalho meu interagiu tão intensamente com o resto de meu universo; um universo caótico de fabricação contínua e compulsiva.
Com efeito, podemos folhear os quatorze livros como um caderno de esboços e resquícios que contém o artista essencial em toda a sua diversidade heteronímica. Ou podemos lê-lo como um “livro dos viajantes” (bloco de anotações + máquina fotográfica) que sempre me acompanha nas viagens nunca partidas. Ou então seja ele uma “Autobiografia sem factos” (Fernando Pessoa pg54) de um Bípede exausto de se equilibrar em duas pernas somente.
Os Quatorze livros que possuem diversas formas, também conheceram diversos autores. Enquanto os Quatorze livros eram só Quatorze livros, de trechos sobre a humanidade, o autor anunciado era eu mesmo, mas logo que entraram trechos diarísticos (o que não demorou muito, apenas o tempo necessário para terminar de escrever a frase-título Os problemas políticos de ser Bípede e começar a escrever a segunda frase-título diarística; Como me tornei Bípede), inevitavelmente mais pessoais, segui o costume histórico de me esconder por detrás de outros nomes.
Seja como for, apostei muito no meu semi-heterônimo , que, graças ao seu estatuto priviliegiado, poderia ter ocupado um espaço bem maior no mundo segundo o autor (eu), se este tivesse mais pernas. Além de assumir o controle dos Quatorze livros e rasurar diversas propriedades intelectuais , o Bípede quase se apoderou de uma importante fase poética de Gustavo ele-mesmo no Livro “24h ” onde, cala o autor e toma todo o espaço para si em um livro discrepante em relação aos outros.
Neste único livro sem texto - e talvez uns do que mais se aproximaram de maneira direta na questão subjetiva de tornar-se ereto - “o silêncio não é simplesmente ligado a algum desempenho humano ativo. Ele próprio é um desempenho ativo. Assim é que o silêncio não é mudez nem simples ausência de som audível. É comparável à diferença entre estar sem visão e ter os olhos fechados”.