24.7.09

Por que narrar

3.4 Por que narrar?
O Bípede é chamado aqui de “personagem-narrador” (mas adiante discutiremos este conceito) pois todos os livros tem em cada uma de suas páginas um tipo de mecanismo de funcionamento estrutural de Imagem+Texto que forma uma narrativa que necessita impreterivelmente de um narrador. Mais claramente: a narrativa é o narrador. E o narrador é a narrativa. Também existem momentos em que só existe o narrador e outros em que a narrativa está contida na figura do narrador. O narrador é a estrutura de uma imagem (ou texto ou ambos) que sofre a intervenção de um personagem-narrador que busca determinar a cada ação um novo sentido para a imagem apresentada.

Aqui então a pergunta “quem é esse personagem –narrador ?” não faz sentido pois narrador, autor e narrativa estão de certa maneira tão fundidos que a existência de cada um depende do outro. Mais proveitoso é respondermos a questão: O que é o personagem-narrador e por que utiliza-se um personagem-narrador.
Esta questão é desenvolvida por Deleuze em O que é a Filosofia, quando explica o papel do Idiota, personagem criado por Descartes, também chamado de Eudoxo:
O idiota é o pensador privado por oposição ao professor público (o escolástico): o professor não cessa de remeter a conceitos ensinados (o homem-animal racional), enquanto o pensador privado forma um conceito com forças inatas que cada um possui de direito por sua conta (eu penso).

Para Deleuze e Guattari, o personagem atua no plano de imanência do autor, descrevendo-o e atuando diretamente sobre a criação de conceitos por parte do autor, sendo que muitas das vezes esses conceitos podem ser “antipáticos”, mas pertencem em sua totalidade ao plano do autor.
Podemos então, a partir do personagem conceitual caracterizar inicialmente o Bípede, um objeto criado por mim e que tem, pelo fato de ser um personagem, a licença e ausência (de responsabilidade e sentido) para discutir os mais diversos temas da existência com menos (nenhum) compromisso ou rigor do que se exigiria de um trabalho declaradamente autobiográfico. Mais do que isso, ao Bípede é dada a autorização para que este vague pelos lugares mais intocados da minha consciência, questionando a quase totalidade de conceitos pré-formados que tenho e indo mais longe do que isso, dou ao Bípede autorização para ironiza-los (exorciza-los?). Ou seja, ao fingir que sou o Bípede, passo a me conhecer mais. Ao fingir que sou o Bípede, consigo ir além de mim mesmo.
Em contrapartida, com a permissão dada pelo personagem Bípede, funcionando praticamente como um escudo é possível apresentar em meus trabalhos minhas questões mais intimas e autobiográficas até questões mais gerais com uma capacidade afirmativa impensável para qualquer pessoa.
O personagem dá ao artista a possibilidade de se esconder atrás dessa máscara que permite que possa passear por terrenos da reflexão e mesmo da confissão, impensáveis se fossem trabalhos abertamente autobiográficos.
A ambigüidade é a marca dessa relação entre autor e personagem, pois por mais que possamos dizer que o personagem é um ato de fala do autor em terceira pessoa, essa descrição seria muito simplista, pois reduz as possibilidades de diálogo entre o personagem e o autor a uma só via. Aqui, mais uma vez Deleuze e Guattari nos ajudam quando dizem que:

O personagem conceitual não é o representante do filósofo, é mesmo o contrário: o filósofo é somente o invólucro de seu principal personagem conceitual e de todos os outros, que são os intercessores, os verdadeiros sujeitos de sua filosofia. Os personagens conceituais são “heterônimos” do filósofo, e o nome do filósofo, o simples pseudônimo de seus personagens.

Sou o pseudônimo do Bípede. O Bípede é meu heterônimo.
O Bípede então, é um personagem vivo criado por mim, que ora me usa para ironizar o que aparentemente acredito ser o “certo” e que ora é usado, refletindo inúmeros questionamento que tenho perante o mundo e minha própria existência, porém sua reflexão não é passiva, ao colocar em “sua boca” palavras que a mim caberia este me faz pensar e recriar questionamentos. (me tornei Bípede ao criar o Bípede)