24.7.09

Dada is Dead. Dada is Dad!


4.2 Dada is Dead. Dada is Dad! A ironia como arma.
A palavra bípede simboliza a relação mais primitiva com a realidade do meio ambiente; com o Bípede, uma nova realidade surge em si própria. A vida aparece como uma confusão simultânea de ruídos, cores e ritmos espirituais, que é trazida para as páginas deste romance de doze volumes, com todos os gritos e febres sensacionais de sua afoita psique cotidiana e com toda a sua brutal realidade. (adaptado de Hulsenbeck, citado em H. Richter, dada, p. 106)
Vamos utilizar aqui o mesmo método empregado nos livros “work in work”: substituindo as palavras, bípede, Bípede e a frase as páginas deste romance de doze volumes por Dada, Dadaísmo e arte dadaísta, respectivamente temos na íntegra o texto de Hulsenbeck. Assim, nesta substituição explico não só a origem deste método de “ressignificação”: a apropriação, rasura e a releitura, como também confirmo a paternidade Dadá destes trabalhos e principalmente que toda história quando se repete é uma farsa. E é com farsas que o Bípede conta algumas de suas histórias. É de farsas que consistem as verdades bípedes. E são as farsas, sempre, as desnudadas pela ironia.
Dada is dead – Dada is Dad é o espírito destes trabalhos. Um espírito histórico em um sentido negativo e positivo simultaneamente.
Como sentido negativo – Dada is dead – um contexto histórico de guerras e barbárie[2] respondido com nojo, niilismo, iconoclastia, morte e “abolição do futuro[3]”. Como sentido positivo – Dada is Dad – é ter como Pai este espírito de “abolição de toda a lógica, que é a dança dos impotentes para criar” e também a herança de um “entrelaçamento de opostos e de todas as contradições, o grotesco, as inconsistências: a vida.” Dada is Dad é ter como pai alguém que irá te ensinar, por exemplo, tudo que um bípede precisa saber sobre a repressão, apropriação, expropriação ou destruição. É ter como pai o espírito punk de um “no future[4]” de uma época de conflitos localizados e barbáries em geral, que comumente é noticiado hoje.
A “retórica de hostilidade aberta”[5], esta desconfiança na cultura[6] são estratégias destas páginas sobre como me tornei Bípede, e a táticas para se alcançar estas estratégias é um tipo de ironia que correia, fragmenta, quebra:
“Se os membros do grupo dadaísta de Zurique visavam a negação/destruição no interior da esfera social e cultural, deram a essa meta uma forma simbólica em sua obra gráfica e literária, por meio de técnicas de descontinuidades estruturais e semânticas.”[7]

Esta descontinuidade estrutural e semântica são versões similares – guardando as devidas atualizações temporais e culturais - da já mencionada narrativa fragmentada e a da “ressignificação do mundo”.
A ironia presente em “Para fazer um poema dadaísta” (um dos métodos de exploração do acaso na criação) de Tzara, caminha no mesmo sentido, mas em direção oposta ao também irônico e sarcástico livro “Como fazer versos[8]” de Maiakóvsky.
Tzara propõe um método aleatório que irá gerar um “autor infinitamente original, de sensibilidade encantadora, embora não apreciado pela horda vulgar” ao passo que Maiakósky escreve: “não forneço qualquer regra capaz de transformar um homem em poeta e de o levar a escrever versos. Essas regras não existem. Poeta é justamente o homem que cria as regras poéticas. (...) Uma observação preliminar: a criação de regras não é uma finalidade poética em si; se assim fosse, o poeta degeneraria em escoliasta, exercitando-se na composição de regras para coisas e situações inúteis ou inexistentes. Por exemplo: seria inútil inventar regras para contar as estrelas rodando de bicicleta a toda velocidade. As situações que exigem regras, apresentam-se primeiro na vida. Os meios de formulação, a finalidade das regras são definidos pela classe, pelas exigências de nossa luta.”
Os dois artistas, Tzara e Maiakóvsky, abordaram a questão da práxis artística de maneira irônica. É explicável esta postura desigual e combinada em ambos os casos: de Tzara, este desprezo e descrença anarquizantes pelo conceito burguês de artista, vivendo em um tempo de destruição e crise dos paradigmas burgueses; a Guerra Mundial. Já Maiakóvsky, alimentava o mesmo desprezo e descrença pelo conceito burguês de artista, menos anarquizante e mais “bolchevique” tendo em vista a construção (real) de uma nova sociedade sem classes[9].
O que une ambos não é somente o ódio positivo ou negativo contra a sociedade vigente, e sim a maneira irônica que encontram de denunciar este funcionamento perverso. Todo o método dadaísta é uma resposta irônica à sociedade burguesa européia. Todo debate travado por Maiakósky em “Como fazer versos”, contra os “zelosos defensores das velharias” que “se abrigavam da arte nova por detrás dos monumentos” é calcado na ironia.
A ironia torna-se a melhor e mais eficiente arma contra aqueles que supostamente apoiados na “razão[10]”, impõem suas verdades em todas as esferas da vida.
O mundo não é harmônico e muito menos racional. A ironia, como já comentado por Muecke, não é destrutiva. Não existe racionalidade no mundo para a ironia destruir, e sim é através de seu funcionamento intrínseco[11] que podemos iniciar uma ressignificação do mundo:
Eles declaram estar guiados pela lógica e pela razão. Hoje em dia basta dar uma olhada pelo mundo para determinar quem é irracional e quem é sadio, se são os capitalistas ou seus oponentes revolucionários. Os atuais donos da sociedade perderam o rumo e estão se comportando como dementes. Pela segunda vez em um quarto de século afundaram o mundo no assassinato coletivo, colocaram a corda no pescoço da civilização e ameaçam destruir o resto da humanidade. E os porta-vozes desses desequilibrados pretendem nos chamar de “loucos” e à nossa luta pelo socialismo de “irrealidade”![12]

Essa é a função da ironia: utilizar os próprios caminhos ilusórios da razão para criar as verdadeiras ilusões que queremos.



[1] FER, Briony, BATCHELOR, David e WOOD, Paul. Realismo, Racionalismo, Surrealismo - Arte no entre-guerras. São Paulo: Cosac & Naif, 1998.
[2] Um período próximo ao que seria definido como “A meia noite do século”. SERGE, Victor. A meia noite do século. Editora Paz e Terra. São Paulo. 1978

[3] T. Tzara, “Dada Manifesto 1918 in FER, Briony, BATCHELOR, David e WOOD, Paul. Realismo, Racionalismo, Surrealismo - Arte no entre-guerras. São Paulo: Cosac & Naif, 1998, p. 20.
[4] Sex Pistols, God save the Queen, álbum God Save the Queen, 1977 A&M
[5] Ibdem, p. 31
.[6] JANCO, “Dada at two speeds” in Ibdem p.36
[7] FER, Briony, BATCHELOR, David e WOOD, Paul. Realismo, Racionalismo, Surrealismo - Arte no entre-guerras. São Paulo: Cosac & Naif, 1998.
[8] Esse Título, além de irônico, carrega uma grande preocupação do revolucionário autor: a formação dos novos poetas e a construção da nova sociedade russa.
[9] Argan considera que “De todas as correntes de vanguarda, animadas por propósitos revolucionários, a que se desenvolve na Rússia nos primeiros trinta anos do século (...) é a única a se inserir numa tensão e, a seguir, numa realidade revolucionária concreta, e a colocar explicitamente a função social da arte como uma questão política.” ARGAN, Giulio Carlo. Arte Moderna – Do Iluminismo aos movimentos contemporâneos. Companhia das Letras. São Paulo 2002. pg. 324
[10] O conceito Dadaísta de razão: “A lógica é sempre falsa. Ela direciona o fio das noções, das palavras, no seu exterior formal, para extremidades e centros ilusórios. Sua cadeia mata, enorme centípede asfixiando a independência. (Tzara, “Dada Manifesto 1918”, in FER, Briony, BATCHELOR, David e WOOD, Paul. Realismo, Racionalismo, Surrealismo - Arte no entre-guerras. São Paulo: Cosac & Naif, 1998, p. 11)
O conceito “bolchevique” de razão: “ O axioma A é igual a A aparece por um lado como o ponto de partida de todo o nosso conhecimento e, por outro, como o ponto de partida de todos os nossos erros” (...) “na realidade um quilo de açúcar nunca é igual a outro quilo de açúcar, uma balança mais precisa sempre mostra alguma diferença. Novamente pode-se objetivar: mas um quilo de açúcar nunca é igual a si mesmo. Tão pouco isto é verdade, todos os corpos mudam constantemente de tamanho, peso, cor, etc.. Nunca são iguais a si mesmos. Um sofista contestaria que um quilo de açúcar é igual a si mesmo “em um dado momento”. Além de seu duvidoso valor prático, este “axioma” tampouco suporta a crítica teórica. Como conceber realmente a palavra momento? Se é um intervalo infinitesimal de tempo, um quilo de açúcar está sujeito no curso desse “momento” a inevitáveis mudanças. Ou é o “momento” uma mera abstração matemática, ou seja, um zero de tempo? Mas tudo existe no tempo... Em conseqüência, o tempo é uma condição fundamental da existência. Portanto o axioma “A é igual a A” significa que uma coisa é igual a si mesma se não muda, ou seja, se não existe.” (Trotsky. Novac)
[11] Situações que, ao se aproximarem, pelo arranjo estrutural da narrativa, ganham um sentido novo.
[12] NOVACK, George. Introdução à lógica marxista. Editora Instituto José Luis e Rosa Sundermann. São Paulo, 2005. P.21